o que fazer com 'madama butterfly'?
notas sobre a ópera que abriu a temporada do theatro municipal de são paulo
Quem vai à ópera pode ter a impressão de que tudo o que compõe um espetáculo precisa ser amplificado. Os cantores enchem os pulmões para garantir que suas notas alcancem as fileiras mais longínquas do teatro. No fosso, regente e orquestra se acotovelam e suam as casacas para arremessar o som para cima. Sobre o palco, a cenografia, a iluminação, o figurino e a maquiagem ocupam o imenso tablado para oferecer ao público o contexto visual da ação. O pendor para o exagero existe desde o libreto: no cânone do gênero lírico abundam as paixões tórridas, o ciúme intempestivo, os arroubos cômicos e a violência espetacular. É quase como se, neste universo onde dominam o melodrama e a tragédia, não houvesse espaço para nuances.
A encenação de Livia Sabag para Madama Butterfly, que abriu a temporada de 2024 no Theatro Municipal de São Paulo, aposta na direção contrária. O reino da fantasia orientalista de Giacomo Puccini dá lugar a uma visão austera do Japão do início do século 20. Na passagem do primeiro para o segundo ato, o abandono da gueixa Cio-Cio San pelo tenente B. F. Pinkerton é sublinhado pelo empobrecimento material de seu entorno: as paredes da casa onde mora estão rasgadas, os quimonos que veste estão empoeirados na barra e nas mangas — sujeira que ela procura esconder das visitas, recolhendo a parte danificada do tecido.
São pequenos gestos que convidam o espectador a reconhecer o caráter desigual da relação, como no dueto que encerra a primeira parte (Vogliatemi bene), no qual Pinkerton insiste, “Vieni, vieni”, enquanto segura o braço de Butterfly. Na récita do dia 16 de março, a soprano Eiko Senda e o tenor Enrique Bravo mostraram a força desses detalhes, que servem de contrapeso crítico ao envolvimento quase irresistível produzido pela música, regida por Roberto Minczuk (orquestra) e Maíra Ferreira (coro).
Mas os problemas que o libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa coloca para uma encenação contemporânea não se encerram aí. Muito já se escreveu sobre como a personagem de Cio-Cio San é construída segundo estereótipos racistas e misóginos, que colocam a mulher japonesa como uma figura submissa, infantilizada ou, para usar uma expressão em voga, “sem agência”. Por outro lado, é dela a decisão mais racional de toda a trama. Quando percebe que o casamento com Pinkerton não é mais uma alternativa viável, Butterfly tira a própria vida, única saída honrosa que encontra para deixar a cena e garantir que seu filho, Dolore, tenha um futuro confortável com a família “legítima” do pai.
O principal desafio para quem deseja interpretar Madama Butterfly hoje talvez seja identificar o ponto de vista que organiza a ópera. Certamente não é o de Pinkerton, personagem que sintetiza a imagem do império norte-americano com camadas pouco sutis de ironia: o oficial da Marinha chama-se Benjamin Franklin, mas se autointitula “lo Yankee vagabondo” (Dovunque al mondo) enquanto — muito sedutor — vende sua visão de mundo ao som da marcha militar The Stars and Stripes Forever. Mas também não é Cio-Cio San, que leva tempo demais para entender o que está em jogo e aparece aos olhos (e ouvidos) do público pelas lentes da alteridade, quase sempre como uma criatura frágil e exótica.
O verdadeiro centro de gravidade moral da ópera é Sharpless, o cônsul norte-americano lotado em Nagasaki. É com ele que criticamos a filosofia de Pinkerton, “che fa la vita vaga ma che intristisce il cor”, e repreendemos o tenente pelo desengano feito a Cio-Cio San, de quem o diplomata se compadece. Sharpless serve como mediador entre o palco e a plateia, comentando a cena e apontando ora a irresponsabilidade do tenente, ora a ingenuidade da gueixa. (Com graves sempre seguros, o barítono Michel de Souza deu ao papel o peso exigido.)
Acontece que, justamente por ser matizado e refletido, o ponto de vista de Sharpless é ainda mais problemático que o de Pinkerton. Como uma faca que perdeu o corte, ele vacila, põe a mão na consciência e se entristece, mas não abandona seu posto. O cônsul continua sendo aquele que jura uma única lealdade, cantada em uníssono com o amigo: “America forever”.
A encenação de Sabag preserva o jogo de pontos de vista original do libreto, mas coloca pistas para a sua crítica. Afinal de contas, para quem está no público, outras e novas fidelidades podem ser formadas.